Por que está tão difícil pensar o ameaçador Brasil de hoje? O psicanalista Jurandir Freire Costa, no artigo “Narcisismo em tempos sombrios”, um dos oito capítulos da coletânea Percursos na História da Psicanálise, que a editora Taurus acaba de lançar sob coordenação de Joel Birman, nos deixa de olhos fixados no monstro. Não há como recuar. Quatro atributos, todos detestáveis, compõem o perfil da cultura brasileira hoje: o cinismo, a delinqüência, a violência e o narcisismo. Não é fácil, antes é muito doloroso, admitir que eles se tornaram a confusa imagem de nosso país. Jurandir, porém, quer fitá-los frontalmente. A leitura de seu artigo, o mais apaixonado do livro, é por isso inquietantee até ameaçadora. Enfrentemos a ameaça.
Não é simples acaso que seja o olhar de um psicanalista. Foi relendo Freud com a atenção voltada para a realidade do país que Jurandir formulou seu esboço de teoria sobre o Brasil. Em textos que alguns psicanalistas pragmáticos costumam encarar mais como ficções arriscadas do que como teoria psicanalítica — casos de 'Mal-estar na Civilização', 'Moisés e o Monoteismo' e a 'Psicologia das Massas' —, Freud mostrou que, sem um olhar que transcenda a realidade, o homem cai na agonia, na atomização, no pânico. Desprovidos de ideais que produzamalguma ordenação para o mundo concreto, homens desnorteados seafogam no temor. Não há homem, portanto, sem ideal. “Somos nós,indivíduos, que inventamos os universos de valores que nos permitem viver em comunidade, ou seja, assumindo compromissos,” diz Jurandir.Só com valores nos tornamos capazes de prometer. De prometer e de cumprir.
O homem se diferencia do animal porque seu destino não está traçado pelo automatismo do instinto. A sociedade humana, fundada sobre um caos, precisa dos artifícios culturais para sobreviver. “É em resposta à vulnerabilidade do corpo, à potência esmagadora da natureza,à mortalidade, que os homens inventam as civilizações,” realça o autor. Quando o homem destrói este equipamento de segurança que o protege do perecimento, da evanescência, e retarda a morte, ele cai na mais absoluta desproteção. Torna-se, então, capaz de tudo, porque não é um animal cujos passos estão delimitados pelas regras de um impulso espontâneo e alheio à razão. “A natureza não tem compromissos”, lembra Jurandir. Para os processos naturais, não existe valor. Tanto faz morrer ou viver, porque tudo entra no mesmo ciclo de eternidade. Os homens é que são capazes de construir um espaço humano de permanência. A cultura não é, portanto, como querem crer os ideólogos da indústria cultural, um simples artefato de revestimento que retoca as aparências do universo humano. Ao contrário, ela é a própria condição de sobrevivência do homem no planeta. “Se você ataca sistematicamente o equipamento cultural de um povo, você retira dos indivíduos seu único dispositivo de proteção para enfrentar a desordem e o vazio”, enfatiza Jurandir. Toda essa digressão é indispensável para se entender a vigorosa teoria que Jurandir esboça a respeito do Brasil. Estamos, hoje, no país da descrença. Somos um povo que não consegue crer. O que houve? “Os indivíduos no Brasil tornaram-se socialmente e moralmente supérfluos,” pensa o psicanalista. “Eles nada valem enquanto cidadãos, pessoas que tem responsabilidades. Ao contrário, são postos em situação de desqualificação e tutela.” Pessoas lançadas nesse fosso moral passama descrer das leis. Valores, regras, ética, compromissos passam a ser entendidos, apenas, como racionalizações que encobrem a violência. Cidadãos amargos preenchem o vazio produzido por esta descrença com uma moral crítica. “O que vigora, hoje, no Brasil é uma razão cínica,” identifica Jurandir, tomando emprestado um conceito de Peter Sloterdijk. “No lugar da indignação, produziu-se um discurso desmoralizante, que diz que toda lei é convencionalismo, formalismo, idealismo, conservadorismo.”
Torpedeada a lei, é todo um universo simbólico que desmorona. Por isso esta sensação nacional de que nada mais tem valor. Tornamo-nos, todos, homens sem pudor. Não são apenas os marginais organizados em falanges para o que der e vier que se deixam dirigir por esta razão cínica. “Existe um elo indissolúvel entre o político que lesa o erá-rio público, o cidadão que ultrapassa o sinal vermelho e o assaltanteque mata”, aponta Jurandir. “Todos deixaram de levar em conta a lei.” Ora, o que é a lei senão esta convenção sem a qual não podemos sobreviver à desordem da natureza? A aniquilação da lei é, então, um ato suicida. “A cultura da delinqüência é uma cultura suicida porque nós homens, enquanto espécie, não temos o instinto da sobrevivência paranos proteger”, adverte Jurandir. Mas cidadãos que atuam embriagados pela cultura da delinqüência têm os olhos vendados pela ilusão de que podem escapar impunemente da dissolução social. Não podem, e aqui começa nossa tragédia brasileira.
O cidadão que estaciona em fila tripla para esperar o filho diante do colégio age, ainda que em proporções diferentes, com a mesma arrogância delinqüente do marginal que fuzila o caixa de um banco. Ambos atuam munidos da ilusão de que, apesar de tudo, irão escapar. Esta desqualificação da lei inclui, em seu extremo, um ataque à política. Vive-mos num país em que a política está quase identificada à delinqüência. Disso se conclui que, se políticos no fim das contas agem movidos por razões inconfessáveis, todos deverão fazer o mesmo. “No Brasil, você começa a ter uma desvalorização da política em favor de uma cultura marginal, de delinqüência, e dos interesses particulares de cada um”, aponta Jurandir. Se a política deixa de ser o espaço próprio ao exercício da liberdade para tornar-se o lugar privilegiado da delinqüência, oscidadãos intimidados retraem-se nos mecanismos cegos de sobrevivência que o pensador americano Christopher Lasch chamou de “mínimo-eu”. Estamos num país fragmentado em pequenos e cínicos eus. Mas eis a serpente enroscada sobre si mesma; na cultura da sobrevivência, em que os indivíduos investem todas as energias na defesa enfurecida de um terreno mínimo de sobrevivência, a conduta social de regra é a própria delinqüência. “O que a razão cínica faz é dizer que não existe mundo de valores, porque qualquer valor é produto da violência”, mostra Jurandir. “Mas, se não existe mundo de valores, qualquer situação éválida. Desaparece, então, qualquer possibilidade de reflexão ética.”
Estamos num país que pensa assim: ou você explora, ou você engana, ou você é calhorda, ou você é escroque, ou não há saída. Porquê? Porque quem faz a lei é quem manda, quem se beneficia da lei são os amigos, quem legisla está comprometido unicamente com seus interesses pessoais. A falácia ou balela de uma lei que fosse igual para todos é, portanto, mentira. Num país que pensa nestes termos, quem age dentro da lei cai no ridículo. “É este cinismo aplicado à vida cotidiana que se torna o mais perigoso”, entende Jurandir. Os cidadãos brasileiros parecem, hoje, condenados a um destes dois terríveis destinos: ou se tornam burocratas obedientes, indivíduos rotineiros que fazem da anulação de si uma maneira de ser: ou reagem tomados pela arrogância delinqüente, atributo extremo de uma cultura regida pelo narcisismo. Os obedientes enfileiram-se na legião de provadores daquilo que Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal”, porque até o mais enlouquecido torturador é, antes de tudo, um burocrata dobrado pelo desejo de obedecer. Os que optam por delinqüir, perdendoa noção de prêmio e sanção, de permissão e interdição, afundam-se na cultura do narcisismo. O burocrata servil é na aparência, o oposto do delinqüente arrogante, mas ambos fazem o mesmo tipo de jogo: desmerecem a importância de um ideal.
Aqui voltamos a Freud. Sem um ideal que caucione a vida social, o homem torna-se um ente que viaja na escuridão. Passa a sofrer, então, de um “pânico narcísico”, expressão pescada por Freud num romance de segunda classe inglês chamado "When It Was Dark", que descreve a desordem provocada por uma suposta descoberta científica de que Jesus Cristo não foi, de fato, imortal. O “pânico narcísico” é um efeito, avassalador, de situações em que o homem perde suas referências de equilíbrio. Diante dele, a opção é a fruição imediata do mundo. O espelho de Narciso é o presente tornado destino. O futuro transforma-se apenas numa quimera, estúpida, que esfarela em nossas mãos. Estamos próximos, é preciso dar o nome, da psicopatia. “O que é o psicopata, senão aquele que, dentro de uma cultura que funciona adequadamente, é cego em relação a valores?”, pergunta Jurandir. “Se todos passam a agir à revelia da lei, entramos de fato numa cultura de psicopatas.” Mas Jurandir, prudente em relação aos estigmas de hábito acoplados à noção psiquiátrica de psicopatia, prefere falar mesmo em delinqüência. O que desnorteia o país hoje é, mais que uma doença, o sentimento de que fomos lançados de volta a um tempo primitivo e disforme anterior a toda lei.
Em tempos sombrios, o narcisismo aparenta ser a única máscara capaz de garantir ao homem um mínimo de imunidade. Só munido de cápsula narcísica, ele ainda pode sentir confiança para navegar pelos desvãos de um país que exterminou a lei. Mas aqui é preciso fazer uma distinção: a cultura do narcisismo e da delinqüência não é um atributo necessário da cultura da violência. Mas o que parece um alívio, é um perigo. “Em regimes totalitários, regidos pela violência, leis draconianas podem manter a sociedade funcionando, porque ainda resta a leida obediência a um só líder”, distingue Jurandir. Mas é uma coesão mecânica, produzida pela dissuasão, pelo medo, pela intimidação. A cultura do narcisismo tomou pé, no Brasil, após a queda do autoritarismo.“Foi a incapacidade dos políticos de catalisar o desejo de mudança queproduziu a descrença, e justificou a delinqüência”, diz. Por isso parecefazer sentido, hoje, o sentimento irresponsável de que os tempos de regime autoritário, ao menos, o país tinha alguma lei. Aqui Jurandir nos deixa diante de uma grave advertência: num país em que a lei foi posta em descrédito, qualquer promessa de lei, por mais draconiana que seja, ou talvez quanto mais draconiana seja, pode comportar um poder de sedução irresistível. Podemos estar montados, na cegueira do nosso pânico, sobre o ovo da serpente. A cultura narcísica é, em algumgrau de possibilidade, uma cultura pré-fascista.
A análise afiada de Jurandir nos coloca diante de um risco: o perigo da paralisia. O sintoma da doença brasileira seria, agora, a incapacidade de reação. Mesmo aqueles que conservam um mínimo de responsabilidade para com o país não escapam deste sentimento deimpotência. “Enfatizo isso porque não tenho uma visão idílica do que pode vir a acontecer”, admoesta. “Eu acho que o Brasil pode não dar certo, acho que a catástrofe pode chegar. Nada assegura que as coisas tenham solução. Há coisas que se encaminham para um ponto em que não há mais solução possível.” Jurandir não faz esta dura constatação movido pelo pessimismo, mas pelo desejo de reação. Seu artigo é, sem dúvida, uma corajosa peça para a montagem de um novo país.
O problema é que todo o país parece, hoje, ameaçado de imobilismo. “As classes médias passam a sentir, agora, o mesmo vazio de perspectiva que sempre foi sentido pelas populações marginalizadas”, aponta. “Elas nunca tiveram qualquer universo de esperança. Só que isso, que antes era sentido só no gueto agora passa a ser comum a todos nós”. O cinismo aparece, na verdade, para encobrir o sofrimento. A saída narcísica leva os cidadãos a buscar a felicidade na proteção de suas casas, munidos de artefatos de consumo cada vez mais sofisticados, mas cada vez mais descrentes de qualquer saída coletiva. Jurandir pensa que o que está em jogo, por fim é a liberdade de sair à rua, de participar do convívio comum. “Era isso o que o escravo, não tinha, e era por isso que ele não era livre”.
Cidadãos reclusos em seu narcisismo, armados de cinismo até a alma, para quem atuar socialmente é o mesmo que delinqüir, vivem da ilusão de que vão escapar solitários da catástrofe. “Não vão escapar”, enfatiza Jurandir. “A espécie humana não tem instinto de sobrevivência. Ela pode explodir o planeta de uma hora para outra, pode fazer da própria vida um verdadeiro inferno”. O que a protege de si mesma é a cultura. Este mundo de leis e ideais que transcende cada desejo individual e nos faz empenhar a palavra e depois cumpri-la. Sem os limites ditados por esta lei, o país permanecerá enjaulado nas pequenas miríades do narcisismo. É ele que nos enlouquece.