terça-feira, 10 de agosto de 2010

XVII - De crudelitate et pietate; et an sit melius amari quam timeri, vel e contra*

Passando às outras qualidades citadas acima, digo que todo príncipe deve desejar ser tido por piedoso, e não por cruel; contudo, ele deve estar atento para não usar mal a piedade. César Bórgia era considerado cruel; no entanto, sua crueldade recuperou, uniu e pacificou a Romanha. Assim, a um exame mais detido, ver-se-á que ele foi bem mais piedoso que o povo florentino, que, a fim de evitar a fama de cruel, deixou que Pistoia fosse destruída. Portanto um príncipe não deve preocupar-se com a má fama de cruel se quiser manter seus súditos unidos e fiéis, pois com pouquíssimos atos exemplares ele se mostrará mais piedoso que aqueles que, por excesso de piedade, permitem uma série de desordens seguidas de assassínios e de roubos: estes costumam prejudicar a todos, ao passo que aqueles, ordenados pelo príncipe, só atingem pessoas isoladas. Dentre todos os soberanos, o príncipe novo é o menos capaz de escapar à fama de cruel, já que os Estados recentes são cheios de perigos. Virgílio afirma pela boca de Dido: "Res dura et regni novitas me talia cogunt/ moliri et late fines custode tueri".** Todavia convém ser comedido nas convicções e na ação, sem se deixar tomar pelo medo, procedendo com temperança e humanidade, de modo que a excessiva confiança não o torne incauto nem a desconfiança em excesso o torne intolerável.

Daí nasce uma controvérsia, qual seja: se é melhor ser amado ou temido. Pode-se responder que todos gostariam de ser ambas as coisas; porém, como é difícil conciliá-las, é bem mais seguro ser temido que amado, caso venha a faltar uma das duas. Porque, de modo geral, pode-se dizer que os homens são ingratos, volúveis, fingidos e dissimulados, avessos ao perigo, ávidos de ganhos; assim, enquanto o príncipe agir com benevolência, eles se doarão inteiros, lhe oferecerão o próprio sangue, os bens, a vida e os filhos, mas só nos períodos de bonança, como se disse mais acima; entretanto, quando surgirem as dificuldades, eles passarão à revolta, e o príncipe que confiar inteiramente na palavra deles se arruinará ao ver-se despreparado para os reveses. Pois as amizades que se conquistam a pagamento, e não por grandeza e nobreza de espírito, são merecidas, mas não se podem possuir nem gastar em tempos adversos; de resto, os homens têm menos escrúpulos em ofender alguém que se faça amar a outro que se faça temer: porque o amor é mantido por um vínculo de reconhecimento, mas, como os homens são maus, se aproveitam da primeira ocasião para rompê-lo em benefício próprio, ao passo que o temor é mantido pelo medo da punição, o qual não esmorece nunca.

Todavia o príncipe deve inspirar temor de tal modo que, se não puder ser amado, ao menos evite atrair o ódio, já que é perfeitamente possível ser temido sem ser odiado. Isso só será viável se ele não cobiçar os bens de seus cidadãos e de seus súditos, bem como as mulheres destes. E, quando for imprescindível agir contra o sangue de alguém, que o faça por uma justificativa sólida e um motivo evidente. Mas o mais importante é abster-se dos bens alheios, pois os homens se esquecem com maior rapidez da morte de um pai que da perda do patrimônio; ademais, nunca faltam motivos para atentar contra o bem de outrem, e aquele que começa a viver de rapina sempre encontra razões para apropriar-se do que é alheio, ao passo que, para atentar contra a vida, as razões são mais raras e fugazes.

Porém, quando o príncipe está com seus exércitos e tem sob seu comando multidões de soldados, não deve importar-se absolutamente com a fama de cruel, pois sem ela não se mantém um exército unido nem disposto ao combate. Entre as notáveis ações de Aníbal, costuma-se ressaltar que ele, comandando um exército imenso, constituído de soldados originários de várias nações e levados a guerrear em terras estrangeiras, nunca deixou que emergissem dissensos, nem entre eles nem contra o príncipe, tanto na má quanto na boa fortuna. E isso só foi possível graças à sua crueldade inumana - a qual, acrescida de suas infinitas virtudes, o fez sempre venerável e temível diante de seus soldados. Sem ela, e sem seus efeitos, toda sua virtude não teria bastado; e os historiadores, pouco ponderados neste ponto, em parte admiram suas ações, em parte condenam seus motivos fundamentais.

O fato de que suas virtudes não teriam bastado pode ser aferido em um confronto com Cipião, homem excepcional não só em sua época, mas também na memória de todos os tempos, cujos exércitos se rebelaram na Espanha; mas tal revés só ocorreu por sua excessiva piedade, já que ele deu a seus exércitos mais liberdade do que seria conveniente à disciplina militar. Por isso ele foi criticado por Fábio Máximo no senado e acusado de corromper as milícias romanas. Cipião não punira a insolência do legado que havia aniquilado os locrenses, nem vingara a morte destes, devido à sua natureza complacente; tanto que alguém, tentando defendê-lo no senado, alegou que havia homens mais capazes de não errar que corrigir os erros alheios. Com o tempo, tal natureza teria conspurcado a fama e a glória de Cipião, caso ele persistisse nela estando no poder; porém, vivendo sob o governo do senado, essa sua danosa qualidade não somente se ocultou, mas foi a principal causa de sua glória.

Portanto, voltando à questão de ser temido e amado, concluo que, se os homens amam de acordo com sua vontade e temem segundo a vontade do príncipe, um príncipe sábio deve assentar-se naquilo que é seu, e não no que é de outrem, precisando apenas, como foi dito, encontrar meios de escapar ao ódio.

* "Da crueldade e da piedade; e se é melhor ser amado que temido".
** "A vida dura e o novo reino me constrangem/ a guarnecer até as últimas fronteiras", Eneida i, vv. 563-4.

Niccolò Machiavelli , in "O Príncipe", capítulo 17

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